Elisa Iop
O Enigma de Efigênia
Por Fernando Lindote
A produção mais recente de Elisa Iop mantém características que remetem
aos trabalhos seminais da artista, como a reiteração obsessiva de elementos e
o cuidado minucioso com a finalização das obras. Como características de uma
mútua implicação, essa repetição cuidadosa confere uma tensão específica à
obra, mantendo-a sempre na iminência de mais uma torção no seu repertório.
A coerência entre intenção e meio de produção se faz presente desde seus
primeiros trabalhos em gravura. A estrutura concreta da gravura permitiu que
Elisa fizesse suas investigações iniciais no universo da repetição compulsiva
que iria desenvolver no correr dos anos. Desde sua temática, até à escolha dos
meios, podemos notar a singularidade de seus procedimentos. Uma série de
gravuras pôde resultar num jogo proposto à participação do fruidor. Nesse
trabalho, a linguagem convencional da gravura expandia-se numa concepção
limítrofe entre o objeto e a instalação.E tanto a fatura das imagens
reproduzidas quanto o acabamento das partes em madeira que lhe
emprestavam corpo, demonstravam, antes de uma preocupação decorativa
com o "objeto belo", uma indisfarçável compulsão pelo detalhe. E o detalhe nas obras de Elisa Iop ganha estatuto dramático, na medida em que funciona
como índice do que, na esfera da atividade humana, excede a eficiência e o
funcional.
A noção de arte como jogo e desperdício é, segundo Georges Bataille , um
sintoma da nossa condição humana. Quando Bataille investiga os desenhos nas
cavernas de Lascaux , ele vai perceber que além do ritual religioso, o que se
inaugurava naquele espaço sagrado, era uma atividade de ordem diversa do
ritual para manter a concentração do homem na caça. Os desenhos realizados
nas cavernas perfazem um jogo com a estrutura das pedras, que vai além do
caráter funcional convencionalmente atribuído a esses desenhos. E mesmo
algumas imagens,como a de homens mortos, estão longe da mera preparação
ritual para a caça ou a guerra. Existe ali, nos desenhos e na festa sagrada que
os acompanhava, um sentido de reflexão que excede a necessidade.E nesse
espaço de excesso e desperdício estaria o ponto diferencial do homem, tornado
humano na invenção da arte.
Todo investimento de tempo e vida da artista resulta num jogo que, afinal
de contas, é somente linguagem exposta na crueza de sua ossatura.Ou seja,
um jogo que quase não se joga e que, quando posto em movimento, não
possui fim ou finalidade.
Já nesta fase, Elisa Iop expandia seu processo de trabalho para além do
ofício estrito da gravura. E retinha dessa linguagem alguns aspectos e
conceitos que haveriam de se aprofundar nos trabalhos seguintes.
Quando realiza alguns objetos cinéticos em tecido, composto de vários
planos sobrepostos, a artista radicaliza uma abordagem aberta da gravura.
Nessas obras, a repetição dos planos que compõe cada peça é o elemento
estrutural. E a inclusão de imagens gravadas vem acrescentar uma camada a
mais no significado do trabalho.
A partir desse momento, e cada vez de modo mais incisivo, Elisa se move
no espaço delimitado entre o objeto e a instalação. Cada objeto realizado, no
entanto, possui estrutura suficiente para existir isoladamente. Esses objetos
podem ser concretizados a partir de uma gravura, um desenho ou mesmo a
partir de um outro objeto encontrado. Mas o que se pode perceber nessas
escolhas, é que elas vão recair sobre estruturas que já são, em si, simulacros.
Quando a artista escolhe trabalhar com a apropriação da boneca Barbie,
por exemplo, não se pode esquecer os vários níveis de repetição de um modelo
que se apresentam nesse brinquedo. Desde a escala industrial do objeto de
plástico até a multiplicação do modelo ideológico do gênero feminino, a boneca
Barbie opera como objeto simbólico no nível da reiteração. E essas imagens se
potencializam pela repetição.Assim como acontece nas obras de Elisa Iop,
onde, a cada acréscimo de uma mesma imagem, os conteúdos se aguçam e se
tencionam.
Mas Elisa não se apropria das bonecas apenas no sentido literal. Elisa
desloca esses corpos seriados para situações que não fazem parte do contexto
idealizado pelos fabricantes da boneca. Em sua obra mais recente, a artista
envolve a boneca em uma mortalha negra, e depois a deixa repousando em
uma urna funerária feita especialmente para ela. Desse deslocamento já
significativo do brinquedo, se desdobra outro, mais dramático, que se dá no
nível do horizonte simbólico.
Concebida como emblema de uma juventude estereotipada e eterna, a
boneca Barbie se vê envolvida, nessa obra, pelo véu escuro da morte. E seu
universo rigidamente marcado por uma espécie de saúde e alegria
compulsórias, se surpreende contaminado pelo índice inequívoco da dor. A
introdução da noção de finitude na juventude eternizada, prometida pelo
contexto da boneca Barbie, aponta um viés de crítica ideológica presente nesta
obra.
E uma leitura deste tipo pode ser ratificada ao analisarmos outro elemento
deste mesmo trabalho. A contra-face da urna funerária de madeira é
constituída de uma caixa de acrílico em cujo interior se encontra presa um
boneca inteiramente despojada de adereços. Nua, esta outra boneca indica,
mesmo assim, alguma coisa de extático e paralisado. De fato, no contexto
narrativo que se interpenetra a esta produção, este elemento da obra remete
à clonagem do personagem representado pela boneca. E aqui, mais uma vez,
encontramos um elemento, repetido e ligeiramente deslocado. Pois a promessa
de eternidade contida na boneca Barbie, depois de obliterada pela Barbie
embalsamada, é retomada em outro lugar. Não mais na apresentação literal da
boneca, mas nesta como índice de uma promessa mais concreta e inquietante:
a possibilidade de clonagem oferecida pela ciência. A artista desloca, assim, a
crítica ideológica antes dirigida à boneca, agora ao pesadelo representado pela
possibilidade de eternização acenado pela ciência atual.
Como vemos, Elisa Iop se vale de códigos demarcados no mundo
contemporâneo, para realizar seus deslocamentos sutis, aonde, a cada
operação, novas questões vem à tona; sem que uma ou outra se coloque como
definitiva. Preservando assim uma estrutura de jogo, em que, a cada lance, o
foco de interesse é deslocado de um espaço conceitual a outro,e onde a força
simbólica oscila entre significados próximos porém diferenciados.
Mas esta obra não fica apenas nas possibilidades de representação pela
apropriação das bonecas em si. Outro tipo de apropriação se coloca entre as
balizas dos objetos de madeira e acrílico: uma série de desenhos a grafite
colocados entre superfícies de cera.
Os desenhos que dão origem a este segmento da obra foram realizados
com linhas pretas sobre papel e dão conta da representação gráfica da Barbie
morta na urna de madeira e da Barbie clonada na caixa acrílica.
Esses desenhos, por sua vez, deslocam o nível de representação, do
universo do produto industrial, para um tipo de representação mais compatível
com o do desenho de observação da figura humana. Ao desenhar usando as
bonecas como modelo, Elisa acaba por humanizá-las. Seus desenhos mais
parecem baseados em figuras de carne e osso do que em pequenas figuras de
plástico.
Os desenhos que representam a figura morta e embalsamada parecem nos
falar de lembranças há muito perdidas. Como se essa figura emergisse de um
passado remoto e terrível, a lembrar da finitude que nos cerca e iguala. E a
linha retém, em suas trajetórias, um caráter descritivo e expressivo,
simultaneamente.
Elisa guarda um grande número de desenhos, que parecem ocupar um
espaço de devaneio registrado, no processo de desenvolvimento de sua
obra.Cada nova etapa em seu trabalho é pautada por desenhos e anotações,
que são posteriormente guardados em seu atelier.
Mas no caso de Fragmentos da Vida de Efigênia, a artista utiliza esses
desenhos na construção de retângulos de cera, acondicionados em molduras
de madeira. Em um espaço entre o fundo e a superfície de cera, flutuam
fragmentos de papéis desenhados com as imagens da personagem.
Efigênia é o nome sob o qual Elisa ficcionaliza seu trabalho. Através da
suposta vida de Efigênia, se desenrola toda uma série de investigações sobre a
representação em seus vários níveis.
Efigênia se traduz, portanto, como a esfinge sob a qual se entretecem
questões de gênero, modelos sociais e seus espaços de representação. Na
medida em que a personagem nos é traduzida, tanto na personificação das
duas bonecas Barbie como também através dos desenhos de observação
destas, podemos perceber que o ponto nevrálgico do trabalho não se estabiliza
nas superfícies materiais da obra. Ao contrário, esta obra se dá pelo
atravessamento de seus componentes tangíveis por feixes de questões
conceituais. Ou seja, pela análise crítica dos modelos de representação e das
questões ideológicas contidas neles.
Não obstante essas implicações, este trabalho se apresenta, como
acontece em outras obras de Elisa Iop, em modelo aberto. A leitura, por um
lado, indica um certo tipo de narrativa, mas o sentido dessa narrativa pode ser
no modo ocidental, da esquerda para a direita ou na maneira oriental dos
mangás,os tradicionais quadrinhos japoneses, que são lidos de trás para
adiante. As extremidades, do início ou do fim da narrativa, são constituídas
pelas caixas com as bonecas. E no espaço intermediário, temos nove peças de
cera com desenhos guardados. Essa estratégia de concepção vai implicar numa
indecisão constitutiva da obra. E essa falta de uma direção forte torna a
narrativa circular, e, portanto, aberta ao infinito.
Se começamos a leitura da obra a partir da pequena urna funerária, temos
a seguir os nove desenhos e depois destes, a caixa acrílica com a Efigênia nua.
Mas assim que chegamos nesse ponto já percebemos que o caminho não foi
definitivo e que poderia ser trilhado novamente a partir deste novo ponto de
origem. E assim, sucessivamente.
Ao nos depararmos com Fragmentos da Vida de Efigênia podemos tentar
apreender seu sentido último como se o trabalho propusesse um enigma a ser
decifrado. No entanto, a obra opera justamente no despistamento constante
de um significado unívoco.E como elemento lúdico, permanece a espera de
uma nova abordagem.
Fernando Lindote/ julho/2004